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​Do idealismo inconsequente à mobilização da conspiração

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"​​Do idealismo inconsequente à mobilização da conspiração" A Europa, enquanto ideia e civilização, encontra-se hoje num interregno melancólico. Não se trata meramente de uma crise económica ou geopolítica, mas de uma tragédia de carácter metafísico. ​O século XX legou-nos contrastes ideológicos tão abissais que a verdade histórica se dissolveu na retórica do medo.  De um lado, encontramos Richard von Coudenhove-Kalergi, o aristocrata cosmopolita cujo projecto Pan-Europa era, no período entre-guerras, um grito idealista contra o nacionalismo homicida. As suas reflexões sobre o "homem do futuro" ser de "raça mista" eram, então, um prognóstico filosófico, elitista na sua génese, mas destituído de uma ambição imediata de engenharia social.  ​O projecto de unificação, embora nascido da mais nobre das vontades, sucumbiu à sua própria inconsistência estrutural. O que prometeu ser uma federação política de sujeitos tornou-se num complexo de regulament...

"Yukio Mishima e o suicídio da Europa "

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"Yukio Mishima e o suicídio da Europa" A 25 de Novembro de 1970, Yukio Mishima, um dos mais proeminentes e controversos escritores japoneses, pôs fim à sua vida num meticuloso e brutal  seppuku (harakiri  quando menos formal ) , o suicídio ritual dos samurais, após uma tentativa frustrada de golpe de Estado no quartel-general das Forças de Autodefesa do Japão.  Este acto, simultaneamente ideológico, estético e visceral, ergue-se como um grito de revolta contra a decadência que Mishima via no Japão do pós-guerra. Foi um protesto contra a troca da honra e do espírito pela mera prosperidade económica, consagrando a vitória da matéria sobre o que é essencial. É neste ponto que o seu gesto final oferece uma perspectiva trágica para a análise do definhar da Europa contemporânea. O suicídio de Mishima não foi um acto de desespero, mas o ponto final rigoroso de uma filosofia. Ele via na morte a única síntese possível entre a arte (a palavra, o sonho) e a acção (o corp...

"Surfar o kali yuga"

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"Surfar o Kali Yuga" O Kali Yuga, dizem-nos os hindus, é a última das quatro idades do mundo. Depois da Idade de Ouro, da Prata e do Bronze, eis que chega a derradeira, a da Escuridão. Esta última é a era da dissolução, da mentira e, sobretudo, da degenerescência. É o tempo em que os homens já não reconhecem a hierarquia do espírito, em que os deuses se retiram, e em que o que era vertical e solar se converte em plano e mercantil. É a estação onde a tradição se desagrega e o trono é ocupado por ídolos grotescos como: a matéria, a quantidade e o consumo. Vivemos pois, em pleno Kali Yuga. Quem não o percebe basta abrir os olhos e observar a feira circense  em que a política se tornou, que a moral é, agora, ditada pela publicidade e que a cultura é um pasto de massas sem raiz. O povo já não canta os hinos da sua Pátria, mas repete, dormentemente, mantras globais de plástico. Os heróis foram substituídos pelas celebridades, os sacerdotes pelos "coaches" moti...

"O poder da abstenção" enviado ao "O Diabo"

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"O poder da abstenção" Há um silêncio mais eloquente do que qualquer grito, e esse silêncio é o da abstenção. A abstenção não é, necessariamente, o desinteresse; é, muitas vezes, a recusa em legitimar o jogo viciado da representação e a resistência ao simulacro da escolha. A democracia moderna proclama o direito ao voto como se fosse o seu dogma supremo. Mas o direito de não votar é o seu corolário lógico. A liberdade, se for genuína, inclui o direito de se recusar a participar no teatro do poder. O poder da abstenção reside na sua força negativa e, tal como na poesia, o que não se diz pode ter mais peso do que o que se diz. A abstenção, enquanto fenómeno de massa, é o espelho da descrença colectiva; mas, enquanto acto individual, pode ser um gesto filosófico, quase ascético.  Ortega y Gasset, observador da massa moderna, diagnosticou que "o homem-massa acredita ter o direito de impor as suas vulgaridades a todos." A abstenção é, então, o ref...

"Tenham trend na Língua" enviado ao "Observador"

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"Tenham trend na língua"  A língua, que um dia atravessou mares e oceanos, deixou-se agora arrastar pelas marés das trends . Todos repetem as mesmas expressões, os mesmos gestos de fala, e o português parece cada vez mais um eco global sem voz própria. Hoje, tudo "virou" qualquer coisa. O verbo "tornar-se", tão elegante e exacto, foi atirado para o esquecimento. "Isto virou moda", "virou tendência", "virou um clássico".  O mesmo acontece com o "tipo", que já deixou de pressupor uma comparação e  passou a ser vírgula. "Fui lá, tipo, ver se estava aberto." "Ele ficou, tipo, chateado." O "tipo" passou a ser o travão da insegurança, o enchimento da fala e o descanso do pensamento. E há ainda o "meio que",  uma expressão que pretende suavizar o tom mas que só enfraquece a ideia: "meio que gostei", "meio que choveu", "meio que percebi". É o ...

"Cambada de fascistas " in Observador

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"Cambada de fascistas" Há palavras que perdem o seu peso quando são usadas em demasia. "Fascismo" é uma delas. Durante décadas, foi um termo rigoroso, que designava uma realidade histórica concreta, a do totalitarismo revolucionário do início do século XX, que mobilizava massas e cultuava a força. Hoje, é um insulto automático, lançado como reflexo sobre aquele que ousa pensar diferente. O seu abuso não revela coragem moral, mas antes uma enorme pobreza intelectual. Chamar "fascista" a quem é identitário é, antes de mais, um erro de categoria. O fascismo, enquanto fenómeno histórico, nasceu de um contexto muito preciso: a crise do liberalismo europeu após a Grande Guerra, o medo do comunismo e a desagregação das certezas do progresso. Era uma tentativa de refundar o mundo pela acção, pela unidade, pela disciplina e pela força. Giovanni Gentile, o seu filósofo, descreveu-o como "a eticização do Estado", ou seja, uma fusão entre moral e...

"5 de Outubro e o mito de Zamora" in Observador

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​"5 de Outubro e o mito de Zamora" O Tratado de Zamora de 1143 é um dos pilares mais instáveis do panteão da História de Portugal. Gravado no imaginário nacional como o baptismo solene da Nação, este evento não passa, no escrutínio factual, de um mito fundador forjado pela conveniência histórica. É o momento em que a astúcia política se sobrepõe à verdade documental, elevando um simples colóquio a um acto fundacional irrevogável. ​Incomodamente, não existe verdadeiramente um documento oficial que ateste o dito "Tratado" com o nome e teor que a tradição lhe imputa. O que se deu em Zamora, a 4 e 5 de Outubro de 1143, foi meramente um colóquio, uma cimeira diplomática mediada pelo Cardeal Guido de Vico, legado papal. ​Afonso Henriques, recém-aclamado rei após a Batalha de Ourique (1139), usava o título sem que este fosse plenamente reconhecido pelo seu primo e suserano, o Imperador Afonso VII de Leão e Castela. O encontro, portanto, não foi a co...