"Surfar o kali yuga"
"Surfar o Kali Yuga"
O Kali Yuga, dizem-nos os hindus, é a última das quatro idades do mundo. Depois da Idade de Ouro, da Prata e do Bronze, eis que chega a derradeira, a da Escuridão. Esta última é a era da dissolução, da mentira e, sobretudo, da degenerescência. É o tempo em que os homens já não reconhecem a hierarquia do espírito, em que os deuses se retiram, e em que o que era vertical e solar se converte em plano e mercantil. É a estação onde a tradição se desagrega e o trono é ocupado por ídolos grotescos como: a matéria, a quantidade e o consumo.
Vivemos pois, em pleno Kali Yuga. Quem não o percebe basta abrir os olhos e observar a feira circense em que a política se tornou, que a moral é, agora, ditada pela publicidade e que a cultura é um pasto de massas sem raiz. O povo já não canta os hinos da sua Pátria, mas repete, dormentemente, mantras globais de plástico. Os heróis foram substituídos pelas celebridades, os sacerdotes pelos "coaches" motivacionais e os novos guerreiros idolatrados são, agora, os jovens gestores de "startups" sedentos de valores e metas lucrativas.
Surfar o Kali Yuga é compreender a decadência sem se deixar arrastar por ela. É caminhar entre os destroços mantendo a coluna erguida. É rir, não com leviandade, mas com ironia cruel, da estupidez reinante. É conservar em si, ainda que secretamente, a verticalidade de um homem distinto, enquanto as massas celebram as suas próprias dissoluções.
Não se trata de uma caricatura de um chauvinismo sentimental, mas da afirmação de uma pertença ao eterno, à tradição e ao espírito que está para além das modas e dos caprichos do presente. É saber que a Pátria não é apenas um solo, mas também um destino metafísico; não apenas geografia, mas, orgulhosamente, verticalidade espiritual.
Assim, ao surfista do Kali Yuga cabe uma tarefa paradoxal. Por um lado, deslizar sobre as ondas do absurdo sem sucumbir; por outro, manter o riso sarcástico sem perder a gravidade interior. Onde os outros vêem progresso, este reconhece o rosto da decadência; onde alguns celebram a diversidade, o surfista denuncia a dissolução; onde uns gritam liberdade! de punho fechado, este pressente a escravidão disfarçada de uma liberdade esfumaçante.
A duração do Kali Yuga é medida em anos divinos e, segundo os cálculos, a sua duração é de 432.000 anos humanos. Acredita-se que o Kali Yuga começou pouco tempo após a partida de Krishna, o que, de acordo com as estimativas, foi por volta de 3102 a.C. Isto significa que, segundo a tradição, estamos a viver no Kali Yuga há mais de 5.000 anos.
Filipe Carvalho