"O poder da abstenção" enviado ao "O Diabo"

"O poder da abstenção"

Há um silêncio mais eloquente do que qualquer grito, e esse silêncio é o da abstenção. A abstenção não é, necessariamente, o desinteresse; é, muitas vezes, a recusa em legitimar o jogo viciado da representação e a resistência ao simulacro da escolha. A democracia moderna proclama o direito ao voto como se fosse o seu dogma supremo. Mas o direito de não votar é o seu corolário lógico. A liberdade, se for genuína, inclui o direito de se recusar a participar no teatro do poder.

O poder da abstenção reside na sua força negativa e, tal como na poesia, o que não se diz pode ter mais peso do que o que se diz. A abstenção, enquanto fenómeno de massa, é o espelho da descrença colectiva; mas, enquanto acto individual, pode ser um gesto filosófico, quase ascético. 
Ortega y Gasset, observador da massa moderna, diagnosticou que "o homem-massa acredita ter o direito de impor as suas vulgaridades a todos." A abstenção é, então, o refúgio do homem que não se reconhece nessa vulgaridade universal.

Historicamente, as grandes transformações não nasceram da obediência, mas da fadiga dos obedientes. E, quando o corpo político adoece, o primeiro sintoma é a apatia; mas o segundo, pode ser a consciência dessa mesma apatia.
Quando o mecanismo se perpetua em nome da mesma alternância política, a verdadeira ruptura pode vir da recusa.
 
Ezra Pound dizia que "a liberdade é a vontade de ser responsável por si próprio." Nesse sentido, o abstencionista não é o que renuncia à liberdade, mas o que a assume na sua plenitude. Um voto inconsciente pode ser mais negligente do que uma abstenção lúcida. 

Nietzsche, esse arqueólogo das motivações humanas, advertiu: "A loucura é rara nos indivíduos — mas é a regra nos grupos, nos partidos, nas nações." A abstenção é a tentativa do indivíduo de não ser tragado por essa loucura colectiva. Surge num gesto solitário de quem se recusa a marchar no desfile da opinião e, democraticamente falando, existe uma força profundamente moral na recusa. O "sim" adapta-se; o "não" arrisca-se.

Talvez um dia a abstenção seja reconhecida não apenas como a falha daqueles que com nada se importam; mas como um sintoma de uma consciência que amadureceu demais para os jogos da política. Até lá, de uma forma ou de outra, continuará sempre a ser o voto invisível dos que se recusam mentir a si próprios.

Filipe Carvalho 

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