"Liberalismo: liberdade ou maldade?"

"Liberalismo: liberdade ou maldade?"

Homo Sapiens, este bípede erigido sob a insustentável leveza do Ser, vive acorrentado à miragem filosófica que lhe arroga a dignidade e a miséria da escolha. É uma concessão divina, bradam os teólogos, desde Agostinho de Hipona, para quem o mal é a privação do bem e fruto do mau uso da vontade. Uma dádiva, dizem, que nos afasta da pura mecanicidade da pedra e nos eleva ao patamar da responsabilidade moral. Mas que arquitectura perversa é esta, que nos dota de liberdade para, invariavelmente, cairmos na abjecção? A maldade não é uma falha no software da Criação; é a sua característica mais estável e, paradoxalmente, a mais definidora da nossa pretendida "liberdade".

​Recuemos ao Gênesis. A interdição, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, não era um teste de obediência cega, mas a inauguração da ambiguidade. Antes, havia apenas a inocência edénica; depois, a consciência, o saber que o caminho se bifurca, que o "sim" implica o "não". E a serpente, esse animal mais astuto que todos os do campo, não trouxe a maldade; trouxe antes a possibilidade, essa chave que abre a porta da masmorra da vontade.

​Caim, o primeiro fratricida, escolheu a maldade numa das suas formas mais cruas, a inveja. E o que lhe diz o Senhor, nessa passagem bíblica de tremenda e terrível lucidez? "Se bem fizeres, não haverá aceitação? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar." (Gênesis 4:7). A maldade está à porta, a nossa natureza está viciada, mas o aguilhão do livre-arbítrio permanece, numa perpétua e irónica injunção.

​​O livre-arbítrio na face da maldade é o cerne do problema da Teodicéia: como conciliar a omnipotência, a omnisciência e a omnibenevolência de Deus com a existência do mal no mundo? Leibnitz tentou justificar "tudo isto", afirmando que vivemos no "melhor dos mundos possíveis", mas não, não é o melhor dos mundos. É apenas o mundo que é, e a maldade parece ser a única constante que o tempo não corrói nem corrompe.

​Se Deus, no seu plano, nos criou sabendo, com a Sua visão eterna, que escolheríamos o péssimo, então o livre-arbítrio torna-se no mais sarcástico dos presentes. Não somos livres de ser bons, somos apenas livres de escolher o quão menos maus seremos.

​O homem moderno, herdeiro de Kierkegaard e Sartre, vive a angústia da sua liberdade. Somos condenados a ser livres e é nesta vertigem que a ambiguidade se instala como a única morada possível. Não existe o Bem e o Mal como categorias absolutas e separadas por um muro intransponível. A acção mais benevolente pode gerar consequências malignas, e o erro mais honesto pode ser lido como uma feroz atrocidade.

​Se a maldade na sua raiz metafísica é a escolha do péssimo em detrimento do bom (como Santo Agostinho definiria), então o mercado desregulado é o seu terreno mais fértil. ​O liberalismo selvagem, essa doutrina económica vestida de dogma moral, não é mais do que a transposição grotesca do livre-arbítrio individual para a esfera do mercado. 

​O sistema liberal transforma a ambiguidade moral na certeza económica de que a competição é fulcral, de que a riqueza é sempre meritória e que a pobreza é sempre falha. ​A oscilação humana entre o egoísmo e a compaixão, é esmagada pela certeza opressiva do Homo Economicus. Um ser unidimensional, movido exclusivamente pela maximização da sua utilidade e do seu lucro. 

A sociedade liberal impõe a competição como Bem absoluto, e a pobreza como prova de um livre-arbítrio mal exercido.​ Um sistema que aceita e glorifica a exploração, o descarte e a acumulação sem limites é, na verdade, a confissão pública de que não evitámos o nosso próprio perecer.

O tempus edax rerum (tempo devorador de todas as coisas), é também o nosso juiz final. Não o Chronos da repetição, mas o Kairós do momento oportuno e da decisão.

​Resta-nos a saudade insuportável, não de um passado de ouro, mas de um estado anterior à consciência da liberdade. Uma saudade metafísica do não-ser, do silêncio da Vontade, onde o tempo não corria ao ritmo frenético da dívida e do lucro. Essa saudade é a única resposta honesta à tragédia de estarmos condenados a ser livres num mundo onde a liberdade significa apenas a nossa vulnerabilidade.

​A vida humana, outrora imensurável, é agora totalmente quantificável. O seu valor não reside na dignidade intrínseca ou nas suas realizações espirituais, mas na sua capacidade de gerar dados e impulsos de produtividade na relação activo ou passivo. A nossa própria existência é um score, um rating, uma linha numa folha de cálculo gigante nas suas mais variáveis frentes.

​Somos constantemente bombardeados por narrativas de "sucesso" e "felicidade", estando estas sempre ligadas à aquisição e à ostentação. A sociedade consumista, motor do liberalismo traiçoeiro, não nos vende produtos; vende-nos a ilusão de completude, de significado e de pertença; tudo o que o próprio sistema nos roubou em primeiro lugar.

​O tempo do indivíduo terminou, as pessoas são agora, e para sempre, números. ​Esta é a vitória derradeira do liberalismo triturante; a subjugação das leis económicas e dos mercados, anexadas à profanação da própria essência humana.

​Rejeitemos esta sentença! Não somos números nem meros resíduos algorítmicos . ​Que a nossa luta seja a afirmação de que a compaixão – essa que Schopenhauer via como a única via de fuga da Vontade – seja mais forte do que a ganância. Recusemos o fatalismo e ressuscitemos da nossa cova numérica . Abominemos a perversidade "das metas" que nos condenam a perecer em silêncio aquando não atingidas.

A rebelião é o único acto de livre-arbítrio que nos resta.

Filipe Carvalho 

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