"Que vergonha" in "O Diabo"

"Que vergonha"

Poucas palavras caíram em tão absoluto desuso quanto a "vergonha". Durante séculos, funcionou como a sentinela da alma, a guardiã invisível que, mais do que qualquer polícia, mantinha os homens dentro das fronteiras do aceitável. Não se tratava apenas de medo da punição, mas de um instinto mais profundo: o rubor do rosto, o desvio do olhar e aquela sensação física de estar em falta perante algo maior do que nós.

Hoje, a vergonha foi assassinada com o mesmo desprezo com que se deita fora um objecto antigo que já não está na moda. Quem ainda fala dela é acusado de moralismo, de conservadorismo retrógrado, ou pior: de repressão sexual e cultural. A sociedade contemporânea ergueu altares ao "não ter vergonha nenhuma", como se a ausência de pudor fosse um sinal de emancipação, coragem ou autenticidade. E, no entanto, em cada gesto desavergonhado, em cada exibição pública daquilo que outrora pertencia à intimidade, o que se vê não é liberdade, mas decadência.

A vergonha não era opressão; era ordem interior. Era o cimento invisível que sustentava a dignidade, impedindo o homem de se reduzir a um animal ruidoso em praça pública. E porque a perdemos, tornámo-nos exactamente nisso, num bando de criaturas histéricas, entregues ao espectáculo da própria degradação.

Vivemos numa época em que não basta viver, é preciso exibir-se o que se vive. O pequeno-almoço deve ser fotografado, a viagem deve ser transmitida em directo e a intimidade deve ser narrada nas redes sociais. O silêncio é interpretado como um fracasso; a reserva, essa, como um sinal de fraqueza.

O que antes se chamava ostentação hoje tornou-se normalização. O narcisismo deixou de ser pecado para ser a condição básica da sociabilidade digital. O indivíduo moderno é um actor permanente, sem bastidores nem cortina, um personagem que representa constantemente para uma plateia invisível que, ironicamente, o julga com uma indiferença igual à sua própria vacuidade.

Este exibicionismo não é inocente e corrói a própria noção de pudor. O corpo, outrora templo, transformou-se numa estratégia de marketing digital. Os rostos já não expressam carácter sem filtros e o ecrã da vida, em vez de experiência interior, passou a ser uma espécie  de performance exterior.
Esta exibição não é apenas tolerada, mas celebrada. Não obstante, aquele que se resguarda, que prefere a discrição, é visto como débil. Esta sociedade, a dos nossos dias, desconfia de quem não se expõe. 

Ao matar a vergonha, a civilização moderna abriu espaço ao triunfo do vulgar. O vulgar sempre existiu mas havia fronteiras; o vulgar era tolerado como excepção e nunca como norma. Hoje, a vulgaridade é o padrão cultural e todos parecem competir para rebaixar ainda mais o nível. O insulto tornou-se numa forma de humor, a obscenidade banalizou-se na linguagem quotidiana e a agressividade converteu-se em estilo de vida.

Antigamente, havia vergonha em ser vulgar, hoje, a vergonha é não sê-lo. Quem tenta falar bem, vestir-se com cuidado ou manifestar o gosto refinado é, prontamente,  acusado de elitismo. 

Há quem argumente que a queda da vergonha nos libertou e que a sociedade se tornou mais aberta, mais tolerante. Mas a realidade é outra: a supressão da vergonha não nos deu liberdade, deu-nos antes, a  escravidão ao olhar alheio.
Nunca estivemos tão dependentes da aprovação pública. A vergonha, paradoxalmente, protegia a liberdade interior, permitindo ao indivíduo guardar para si o que lhe era íntimo, preservando a esfera inviolável. 

Os pais educavam os filhos lembrando-os do que era vergonhoso. Os mestres corrigiam os alunos apelando ao decoro. A comunidade exercia pressão sobre os indivíduos para que mantivessem comportamentos adequados. Havia, por detrás dessa rede de vigilância, um objectivo, o de elevar o homem acima da sua brutalidade instintiva.

Hoje, tudo isso é denunciado como "opressão". A vergonha, que antes lembrava ao indivíduo que não estava sozinho no mundo, que havia normas e tradições a respeitar, é agora tratada como uma cadeia que é preciso romper.

Adultos sem travões, crianças sem guia e  jovens que confundem liberdade com libertinagem. Cada um segue o seu desejo imediato, acreditando estar a ser autêntico, quando na verdade não faz mais do que obedecer ao impulso mais baixo e à moda mais ruidosa.

Mas a autenticidade pode ser uma rasteira perigosa. Não há grandeza no homem que se limita a ser o que é; a grandeza está em tornar-se naquilo que poderia ser. A vergonha era precisamente a mola interior que empurrava o indivíduo a transcender-se.

Há uma relação íntima entre a vergonha e a civilização. A Grécia clássica, com o seu culto da medida, entendia a vergonha como uma força educadora. Roma, no auge da sua disciplina, fazia do pudor uma virtude pública. Quando essas mesmas civilizações perderam o sentido do decoro, entraram em declínio, abrindo o caminho à barbárie.

A vergonha é o que nos afasta do animal. É ela que nos ensina a vestir o corpo, a controlar a linguagem e a moderar os instintos. Ao abolirmos a vergonha, não estamos a caminhar para uma nova forma de liberdade, mas a regressar ao estado bruto;  com a diferença de termos acesso à tecnologia suficiente para difundir a barbárie em grande escala.

Não se pode falar de vergonha sem falar de honra, a sua irmã gémea. A honra era o reflexo público da vergonha privada, aquilo que obrigava o homem a responder diante dos outros pelos seus actos. Onde havia vergonha, havia honra; e onde uma desaparece, a outra desvanece.

Hoje, falar de honra parece linguagem de cavaleiros medievais, de romances ultrapassados. O homem moderno ri-se dela, como se fosse uma relíquia, mas a verdade é que a ausência de honra gera indivíduos incapazes de assumir responsabilidades. 

A honra exige sacrifício, e o nosso tempo, viciado em conforto, detesta qualquer ideia de sacrifício. É mais fácil viver sem vergonha, sem honra e sem dignidade. Mas é precisamente isso que dissolve as civilizações: o abandono da verticalidade moral em troca da leviandade quotidiana.

Filipe Carvalho 

Mensagens populares deste blogue

À Direita com Elegância in "O Diabo"VOL.6

VIRTUOSAMENTE VOL.8

"5 de Outubro e o mito de Zamora" in Observador