Virtuosamente vol.9

"O percurso de um intelectual militante"

Christian Bouchet é uma figura híbrida e inquietante do cenário ideológico contemporâneo: situa-se na intersecção entre a metapolítica radical, o esoterismo ocidental e o nacionalismo revolucionário. O seu percurso assemelha-se ao de um arqueólogo das ideias marginalizadas, que escava nas ruínas da modernidade em busca de fragmentos de sentido dissidente — frequentemente perturbadores, por vezes fascinantes.

Doutorado em Etnologia, Bouchet nunca se contentou com a neutralidade académica. Assume a subversão como método, a contradição como postura, e o antagonismo como força propulsora do pensamento. Nesse sentido, insere-se na tradição de autores como Julius Evola ou Aleksandr Dugin, com quem partilha o fascínio por sistemas ideológicos totalizantes, espiritualidades arcaicas e visões imperiais anti-modernas. O Ocidente liberal, capitalista e secularizado representa, para ele, uma decadência a ser superada — não pelo caos, mas pela Restauração da Tradição.

O seu envolvimento político, embora aparentemente oscilante no espectro esquerda-direita, obedece a uma lógica mais profunda: a da "terceira via", um espaço ideológico fora das categorias tradicionais, inspirado no nacional-bolchevismo, no anti-imperialismo e num certo romantismo revolucionário. Este recusar das etiquetas políticas convencionais não é uma fuga, mas sim uma estratégia deliberada: reencantar a política através do mito, restaurar o absoluto num mundo liquefeito.

Contudo, este itinerário, por mais coerente que possa parecer na sua radicalidade, não está isento de ambiguidades nem de desvios. Bouchet move-se frequentemente nos limites do discurso democrático, apropria-se de imaginários associados à violência simbólica ( por vezes real ), e transforma a anti-modernidade não num objecto de reflexão, mas numa arma ideológica. Não se limitando a desconstruir, pretende, acima de tudo, reconstruir. Pautado por materiais instáveis, referências polémicas e uma retórica sempre no limiar do admissível.

Filosoficamente, Bouchet não constrói um novo sistema. Antes propõe uma constelação de influências, um sincretismo onde se cruzam nomes como Crowley, Guénon, Gurdjieff, Mishima ou Dugin. A sua proposta não é tanto uma filosofia como uma estética "do recuso"; não obstante seja vincadamente presente a recusa do niilismo contemporâneo, do consumismo e da hegemonia americana. Para alguns, isto é um gesto reaccionário; para outros, um grito de resistência lúcida perante o desaparecimento do sagrado.

Em última análise, Christian Bouchet dá voz a correntes que continuam nas franjas da sociedade, exercendo um certo magnetismo. A sua obra, polémica e periférica, não convida à adesão cega, mas à vigilância crítica: é o sintoma de um tempo em que o pensamento racional já não basta, onde o mito, por vezes, regressa pela porta mais obscura.

"Auto da Barracada do Inferno"

Passaram dois meses desde o grotesco episódio do Teatro da Barraca. Aquele em que, entre encenações e acusações, a verdade foi chutada para fora do palco com mais força do que qualquer confirmada agressão. Dois meses em que os órgãos de comunicação social, tão lestos a apontar dedos e tão rápidos a fabricar culpados, se esqueceram de fazer aquilo que diziam prezar: ouvir o outro lado, confrontar versões e permitir o contraditório.

"Quem cala consente" diz-se, mas neste triste episodio, para os que foram falsamente associados ao caso, filmados em plena luz do dia e expostos sem culpa nem contexto, este silêncio não é paz , é uma ferida cheia de metástases. 

Foi-lhes negado o direito à defesa, enquanto a verdade destoava da narrativa e, quando se percebeu que o " confesso agressor" era um ébrio ocasional e não um emissário das "trevas políticas", o caso foi convenientemente abafado. Varreu-se para debaixo do tapete, como se tudo fosse apenas mais um episódio de histeria colectiva e sem consequências.

O caso não foi esquecido e acredito verdadeiramente que ainda haja alguém que considere que o nome e a honra não se arrastam impunemente pelo palco de um teatro decadente.

Portugal, esta terra de epopeias e de farsas, celebrou no dia 10 de junho mais uma glorificação do absurdo nacional, a data em que nos dizem que somos todos Camões, mas acabamos sempre como personagens secundárias de uma comédia mal encenada. E como não poderia deixar de ser, entre bandeirinhas e discursos ocos, houve espaço também, para uma peça paralela de notável mau gosto. 

No palco trôpego do Teatro da Barraca, em vez de arte, tivemos encenação política disfarçada de tragédia pessoal. A narrativa oficial, como guião de uma novela rasca, dizia que um actor teria sido brutalmente agredido por motivos ideológicos. Até aqui nada de novo, é sempre mais conveniente culpar um "neo-qualquer coisa" do que admitir um tropeção ou uma zanga mal resolvida nos bastidores. 

Os media, sempre sedentos por vilões de "consumo rápido", trataram de apontar o dedo a quem calhasse e escolheram o alvo perfeito: alguém que já tinha sido previamente vilificado por não dançar conforme a música progressista e que, sem acaso algum, nem lá estava. E assim, sem testemunhas e bastando apenas o carimbo da indignação, se construiu uma narrativa de pobres factos. 

E então, eis que surge a encenadora-mor, que descartando o esclarecimento, preferiu o papel de sacerdotisa da pós-verdade. Com a voz tremeluzente de uma moral superior, debitou uma série de afirmações alicerçadas em alegações sem provas e insinuações vagas. Fomos, quem assistiu, espectadores de um dramatismo digno de um telefilme.

O dito actor, o mártir em questão, nunca deu a cara. Nem um olho roxo, nem uma declaração emocionada, apenas um post indignado nas redes sociais. Uma vítima invisível de um crime etéreo que acabou por passar, como figurante, ao lado da caravana da indignação mediática; que prosseguiu, com todas as trombetas do apocalipse afinadas para a nota do costume: “A culpa é da extrema-direita!".

Enquanto isso, a PSP, tantas vezes acusada de ausência, esteve no local do início ao fim. Ou seja, qualquer tentativa de violência teria sido presenciada, contida, ou ao menos documentada. Não obstante, o que tivemos foram imagens de cidadãos inocentes, absolutamente alheios ao suposto incidente, filmados e expostos como se fossem bandidos de opereta. Bodes expiatórios de um teatro sem guião, ou melhor, com um guião escrito por mãos demasiado hábeis no ofício da manipulação.

Não há nada mais português do que transformar o teatro, esse templo da liberdade de expressão, num palco de linchamentos simbólicos, onde os factos podem ser obstáculos e a verdade um precalço técnico. E depois, claro, vêm os telejornais, sempre disponíveis para encenar uma segunda parte, com entrevistas a indignados de profissão e a moralistas de ocasião.

O 10 de Junho passou, mas o cheiro a encenação barata ainda paira no ar. O povo, como sempre, ficou à porta, sem bilhete, a assistir à ópera buffa de um país onde se condena sem provas e se inventa agressões com a mesma facilidade com que se pede um subsídio para espectáculos.

Portugal, país de poetas, descobridores e farsantes, onde a verdade, quando entra em cena, já vai a meio do terceiro acto.

Filipe Carvalho 



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