" O 'The Rock' e a amiga " in Observador


Na contemporaneidade líquida, onde as verdades se diluem e as aparências reinam, impõe-se uma reflexão sobre a natureza da atracção humana, especialmente aquela que se manifesta nas relações entre sexos. Longe da pueril romantização dos instintos, proponho um olhar mais acutilante sobre as forças que, nos tempos que correm, parecem moldar o desejo e a escolha do parceiro.

O fascínio pelo vigor físico, pela capacidade de provisão e pela projecção de segurança não são meras invenções do século XXI. São, antes, manifestações de arquétipos que, sob diferentes roupagens, sempre guiaram a escolha do parceiro.

A busca por estabilidade, por um pilar robusto em tempos de incerteza, ressoa com a prudência defendida por muitos pensadores conservadores. A atracção por um homem que não só ostenta força física, mas também capacidade de gerar riqueza e gerir negócios, pode ser interpretada não apenas como materialismo vulgar, mas como uma busca inata por segurança e ordem num mundo caótico. 

Talvez, como observaria Roger Scruton, "a beleza salvará o mundo", não no sentido de uma estética superficial, mas como um apelo a uma ordem intrínseca, uma necessidade de harmonia que o sucesso e a projecção de poder podem, falaciosamente, prometer. 

No entanto, a ironia central, cujo texto subsequente explorará sem pudor, reside na hipocrisia daquele que nega publicamente o que secretamente deseja. Esta dissonância entre o discurso e a prática, entre o que se proclama e o que se escolhe, é uma falha intrínseca à natureza humana. 

Poderíamos ecoar Arthur Schopenhauer, que, embora não seja um conservador no sentido político, partilha uma visão pessimista e realista da natureza humana: "Nenhum animal tortura outro pelo mero propósito de torturar, mas o homem o fá-lo, e é isso que constitui a característica diabólica de seu caráter, que é muito pior do que a meramente animal." Se o homem é capaz de tamanha vilania, não será surpreendente que a mulher, na sua complexidade, revele contradições profundas entre a sua retórica e os seus impulsos.

Como diria Noël Coward, "é desanimador pensar em quantas pessoas se chocam com a honestidade e quão poucas com o engano". Neste palco da sedução, o engano reside na auto-percepção distorcida e na negação do próprio desejo.
Consideremos Thomas Hobbes em "Leviatã", que argumenta que o homem, no seu estado natural, é movido pela competição e pela busca de glória. 

Se aplicarmos esta perspetiva às relações interpessoais, não será a ditadura do "kit completo" do homem uma manifestação desta busca por glória e primazia, e a atração feminina por ele, uma resposta feminina a este poder manifesto? 

É precisamente neste "manifesto de acasalamento" que reside a perplexidade perante o fenómeno dos "The Rocks" humanos. Falo daqueles espécimes masculinos que parecem ter saído directamente de um catálogo de ginásio, com a altura imponente, os músculos esculpidos com precisão e, claro, as tatuagens, esses símbolos de uma rebeldia cuidadosamente planeada.

É fascinante observar como a retórica da conquista se evapora diante de tal imponência física. Onde estão as longas conversas sobre Nietzsche, as discussões acaloradas sobre a política internacional e os serões dedicados à poesia romântica? 

Basta um olhar, talvez um sorriso estudado revelado pela arcada dentária impecável, e o terreno está arado para a sementeira do desejo. Muitas vezes, uma sementeira que nem precisa de rega; umas poucas mensagens trocadas nas redes sociais e o convite para o "encontro" (prescindindo de qualquer artifício intelectual), já está a caminho.

Continuemos a desvendar os mistérios deste fenómeno, com uma lente de aumento focada naquele elemento particular: a tatuagem samoana, aquela que Dwayne "The Rock" Johnson ostenta e que, por alguma razão, se tornou um farol para muitas almas masculinas e femininas. 
Não é apenas uma tatuagem qualquer; é um mapa complexo de símbolos, um testemunho visível de uma herança cultural rica, de força, de linhagem e de protecção. No entanto, na coreografia da sedução moderna, assume um papel que transcende o seu significado original, tornando-se uma espécie de abreviatura visual para "homem de valor".

É quase irónico, não é? Onde a cultura samoana via uma narrativa ancestral gravada na pele, o modernismo da atracção vê, hoje, uma promessa subentendida  de masculinidade em que pouco importa se o portador tem a menor ideia do que cada linha significa.  

Se o físico imponente e a tatuagem samoana já abrem portas e mentes com uma eficiência assustadora, imaginem o poder de fogo quando a essa equação se soma um ingrediente ainda mais potente: o sucesso empreendedor e empresarial. A figura do "self-made man" com ares de "Henry Cavill" é, aparentemente, o nirvana da sedução.
Onde o bíceps e o tríceps falavam de força física, o portfólio de empresas e múltiplas actividades fala de um tipo diferente de poder. 

O diálogo, que já era escasso na presença do físico e da tatuagem, torna-se ainda mais irrelevante. Estão preenchidos os requisitos para a mulher que busca segurança, aventura e, convenhamos, um certo status. Este " boneco alfa" não precisa de grandes galanteios; bastando-lhe a sua presença, a sua pele marcada, o seu corpo esculpido e a aura de prosperidade que o envolve.

Coloquemos a cereja que falta no topo deste bolo fitness: a hipocrisia feminina. Não de todas, claro, mas daquelas que, com ar de superioridade intelectual e um ligeiro revirar de olhos, declaram alto e bom som que "não, eu não me interesso por esse tipo de homem". Estas últimas, as que apregoam a "substância", a "conversa inteligente", o "homem com conteúdo", são muitas vezes as primeiras a cair, e de forma estrondosa, na armadilha do visual que tanto criticam.

De repente, a profundidade do peito torneado parece mais apelativa do que a profundidade de uma boa conversa sobre existencialismo. O charme bruto da tatuagem, que antes era "tão básico", tornou-se num sinal de "mistério" e "autenticidade". E os negócios, que eram "uma distração materialista", são agora prova de "ambição" e "capacidade". É a prova irrefutável de que, por mais que o discurso mude, os instintos primários persistem.

E aqui chegamos ao ponto mais delicado: a mulher que, ao render-se com aparente facilidade a este "kit de sobrevivência" do homem idealizado, acaba por se auto-desrespeitar nas suas escolhas. A mulher permissiva à conquista por atributos outrora, por ela publicamente, rejeitados; valida, mesmo que inconscientemente, a ideia de que esses atributos são suficientes para a sua conquista. Desvaloriza a sua própria complexidade, inteligência e capacidade de procurar algo mais substancial, transformando-se numa vítima consentida do seu próprio instinto.

É imperativo que esta reflexão se eleve para além do humor ácido e aborde as implicações mais sombrias de tais comportamentos, especialmente no que diz respeito à desvalorização da mulher. Quando o valor de uma mulher é medido pela rapidez com que ela se rende a um arquétipo masculino pré-fabricado, estamos a entrar num território perigoso. Reduz-se a mulher de um ser pensante, emocional e multifacetado a um mero objecto de desejo, cuja única função é ceder à atracção superficial.

Quando o desejo feminino é retratado como algo tão facilmente manipulável pelo brilho do músculo, do status e da barba bem feita, é então, tempo de questionar dinâmicas e de procurar um equilíbrio onde a acção física possa coexistir com o respeito pela verdadeira sedução, que afinal, deveria ser uma dança de mentes e corações e não uma simples rendição a um pacote visual.

Filipe Carvalho 


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