"O estranho cansaço de ser Português" in O Diabo


"O estranho cansaço de ser Português"

A recente lei dos Estrangeiros foi saudada por uns como um triunfo do humanismo, por outros como um simples ajuste legislativo inevitável. Mas, se quisermos olhar para lá da superfície, depressa percebemos que não se trata apenas de norma jurídica. Trata-se de um documento antropológico, como um espelho de nós próprios. Isto é, o que a lei revela não é tanto a realidade dos que chegam, mas o estado de espírito dos que cá estão. Um estranho cansaço de ser português.

Portugal sempre foi terra de partidas. Durante décadas, os nossos emigraram para França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça, entre outros. Levaram consigo a língua, a memória e a fidelidade à Pátria; e nunca exigiram que os países de acolhimento se desfizessem para os receber. Pelo contrário, aceitaram a disciplina e os costumes locais, mantendo viva a saudade como um laço invisível à terra natal. O emigrante português sabia que ser estrangeiro não significava deixar de ser português.

Hoje, a lógica inverteu-se. A nova lei parte do princípio de que é o país anfitrião que deve moldar-se ao recém-chegado. A hospitalidade, que outrora era sinal de força, converte-se agora em servilismo, que é, invariavelmente, sinónimo de fraqueza.

O perigo maior não está na chegada do outro, mas na forma como nós próprios já não nos levamos a sério. Falamos de cidadania como se fosse um mero cartão de plástico, esquecendo que ser português é pertença, herança e destino. A elite política e cultural prefere celebrar uma "diversidade" abstracta a afirmar a identidade concreta. Mas uma comunidade que renuncia a si mesma não acolhe o estrangeiro, dissolve-se diante dele.

É aqui que reside o verdadeiro cansaço, na indiferença demográfica de um povo que já não gera filhos suficientes para se perpetuar, na indiferença cultural dos "ensinos" que tratam os nossos autores como peças de museu; e na indiferença espiritual de uma nação que já não acredita ter uma missão no mundo. E quando a Pátria se reduz a um território administrável, a lei dos estrangeiros surge como um disfarce de vitalidade: importa-se o que já não se gera e substitui-se o que já não se quer preservar.

Segundo dados oficiais, em 2024 viviam em Portugal mais de 800 mil estrangeiros (cerca de 8% da população, número que duplicou em dez anos). Em Lisboa, um em cada quatro habitantes já não é português. Nada disto seria necessariamente problemático se o país fosse culturalmente sólido, confiante e coeso. Mas a elite que legisla fá-lo abdicando de critérios, não exigindo assimilação e não oferecendo um lar simbólico; obtendo assim,  como infeliz resultado, a fragmentação em vez da integração. 

Basta olhar para França, onde bairros inteiros se tornaram territórios paralelos, ou para a Alemanha, que reconhece hoje os erros da sua imigração em massa sem assimilação. Portugal, em vez de aprender com estas lições, repete-as incessantemente.

A fronteira não é apenas um risco no mapa, é o rito invisível que nos permite dizer "nós". Sem este limite, não há comunidade, apenas multidão. O universalismo proclamado pela lei não é humanidade: é indiferença. E a indiferença é sempre um prelúdio de morte.

O mais inquietante é que esta renúncia não nasce da generosidade, mas do cansaço. Um cansaço profundo, o cansaço de ser português. Somos um povo que já não acredita plenamente no futuro, que já não encontra força para afirmar a sua singularidade. Estamos perante uma Pátria que prefere dissolver-se num cosmopolitismo vazio do que assumir-se como uma realidade concreta.

A lei dos estrangeiros não é só sobre quem entra, é sobretudo, sobre quem já cá está e que desistiu de existir como povo. É o retrato de uma elite que já não confia na identidade nacional e de uma comunidade que já não encontra energia para se afirmar.

O maior perigo não é a chegada do outro. O maior perigo somos nós, na medida em que nos cansámos de ser. 
Uma nação pode sobreviver à guerra, à pobreza e ao exílio; mas não sobrevive à sua própria indiferença. 

Filipe Carvalho 

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