Valha-nos Nossa Senhora in "Observador"


"Valha-nos Nossa Senhora"

Percorro as ruas da Baixa como quem caminha num sonho estrangeiro. Em cada esquina, uma loja de rendas impossíveis abriga os rostos vindos da vastidão de Bengala, dos subúrbios de Gujarat, ou das margens do Indo onde outrora se erguiam templos a deuses de múltiplos braços. 

Por entre as calçadas romanas de Lisboa, levanta-se uma nova espécie de "lusoturismo espiritual", com epicentro nas lojas de souvenires que pipocam pelas artérias da capital. Nelas, o Galo de Barcelos repousa, empoleirado entre terços fluorescentes e ímanes de frigorífico com sardinhas caricaturadas. Quem são os sacerdotes deste comércio do kitsch?

Há algo de bizantino e de tragicómico, nesta cena: cidadãos oriundos de outra civilização milenar, assumem o papel de guardiões do folclore português para gáudio de suecos entediados e americanos boquiabertos. Vêm, em muitos casos, de uma cultura onde o galo não canta ao amanhecer, mas onde a divindade é azul e dança sobre demónios. Mas, no entanto, vendem com fervor imagens da Senhora de Fátima, como se ela tivesse descido diretamente a Connaught Place antes de visitar a Cova da Iria.

O paradoxo é absoluto. Trata-se de um comércio administrado por gente que, muitas vezes, não fala português, não entende Fátima, e nunca viu um galo cantar senão no fundo de uma caixa de transporte.

Perante esta pantomima mercantil, vendem-se os símbolos de Portugal como se fossem bugigangas da Disneylândia lusófona.
Talvez o Galo de Barcelos ainda cante. Mas hoje, num sotaque importado, entre prateleiras de produtos "Made in China", embalado por um fado em "remix" nos ritmos de bollywood. 

E assim, Lisboa vive o seu novo fado: canta-se a saudade em inglês, serve-se bacalhau a quem nunca comeu peixe seco, e vende-se a alma à unidade por alguém que talvez nunca tenha ouvido falar de Frei Pedro e que não distingue Fátima de Lourdes.

Cristo expulsou os vendilhões com um chicote. Nós, porém, deixamo-los entrar pelas portas principais; apelindando-os de investidores, de dinamizadores, de embaixadores da marca Portugal. Brandem os galos de Barcelos como se fossem troféus; pese embora o desconhecimento de que o galo, antes de ser ícone de prateleira, foi um aviso de Deus contra a injustiça.

É esse, talvez, o novo milagre de Fátima: ver-se vendida por um homem que crê em Vishnu.

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