"Cá vamos, trauteando e rindo " in O Diabo
Passe-se por um qualquer cartaz de festival estival e seremos presenteados com nomes impronunciáveis, ritmos desenraizados e sotaques globais que pouco nos dizem e em nada nos pertencem. As bandas portuguesas, quando figuram, ocupam o espaço simbólico do adereço de quem cumpre quota, como quem pendura um lenço da avó na montra de uma multinacional de vestuário para parecer castiço e autêntico.
A música em português não vende? A explicação mais cómoda e preguiçosa é-nos servida em take-away: "o que vem de fora é que é bom". Esta máxima, repetida como um mantra pelas elites culturais que desdenham da poesia cantada em português para celebrar letras (algumas ocas) em inglês. O estatuto falsificado desta franzina internacionalidade, deslumbra-se numa ideia de universalidade que abdica da identidade.
Uma cultura que só aplaude o que vem de fora, embora já, com pequenas redenções, é uma cultura que deixou de se levar a sério. E um país que não se leva a sério, pois deixará de ter futuro.
Entre a desconstrução cultural e a lógica do lucro imediato, o artista nacional é visto como um mau investimento. Entre o desinteresse dos tecnocratas e a leviandade dos gestores culturais, Portugal vai tendo menos expressão nos seus próprios palcos.
Resgatar Portugal dos bastidores do seu próprio Verão é uma questão de afirmação de soberania espiritual. O que está em causa não é a popularidade de um refrão, mas a sobrevivência de um povo que, ao deixar de se ouvir, corre o risco de deixar de ser.
Os nossos espectáculos "mainstream" de "época-alta" andam orgulhosamente "de cócoras" perante tudo o que tenha sotaque anglófono, batida afro-eletrónica, estética TikTok do Brasil e fluidez latino-caribenha. Os palcos de verão tornaram-se passadeiras de luxo para artistas que, em alguns casos, não sabem localizar Portugal no mapa mas que são, curiosamente, compensados com cachês megalómanos.
Os músicos portugueses, esses, são "alternativos", é lhes dado este rótulo como quem dá um rebuçado a uma criança. São o couvert antes da carne importada. "Vamos apoiar a cena nacional"; dizem os mesmos que, no momento de decidir o cartaz, vendem a alma ao algoritmo e enchem o palco de estrangeirices, preocupantemente lucrativas.
A verdade pode doer, mas enquanto existirem públicos preguiçosos que acham que cantar em português é menor, nutrindo cada vez mais, o enraizado orgulho complexado, continuaremos assim, a bater palmas ao estrangeiro, de costas para nós próprios.
A cultura portuguesa não deveria ser uma opção vegetariana num menu globalizado, esperava-se que fosse o prato principal, e que existisse coragem e habilidade no catering para o bem servir.
Um festival com vinte artistas estrangeiros e dois portugueses não é "diverso", é "perverso".
Olhemos à volta, examinemos os cartazes com sentido crítico: é acentuada a discrepância entre o número de artistas estrangeiros e portugueses, sendo que, muitos destes últimos, vemo-los a cantar noutras línguas que não a nossa.
Um país que escolhe "encolher-se" para parecer moderno, vai, claramente anestesiado, na onda do marketing que vende "experiências" em vez de música; transfigurando a arte num folclore de stories "caçadores de likes".
Ainda há bandas e artistas a solo a resistir, a compor, a gravar com orçamentos tímidos e paixão desmedida. Ainda há quem leve a guitarra às aldeias e a eletrónica de qualidade aos becos das nossas cidades.
Mas há também, quem se sujeite ainda, ao papel de figurante. Quem defenda que cantar "noutras línguas" seja o passaporte carimbado para o sucesso.
Portugal não vende? Vende, já vai vendendo, mas a baixo custo. É preciso haver quem compre o valor, recusando o preço. E se a cultura marca territórios, quem abdica da sua não merece a liberdade que esta lhe oferece.