Do idealismo inconsequente à mobilização da conspiração
"Do idealismo inconsequente à mobilização da conspiração"
A Europa, enquanto ideia e civilização, encontra-se hoje num interregno melancólico. Não se trata meramente de uma crise económica ou geopolítica, mas de uma tragédia de carácter metafísico. O século XX legou-nos contrastes ideológicos tão abissais que a verdade histórica se dissolveu na retórica do medo.
De um lado, encontramos Richard von Coudenhove-Kalergi, o aristocrata cosmopolita cujo projecto Pan-Europa era, no período entre-guerras, um grito idealista contra o nacionalismo homicida. As suas reflexões sobre o "homem do futuro" ser de "raça mista" eram, então, um prognóstico filosófico, elitista na sua génese, mas destituído de uma ambição imediata de engenharia social.
O projecto de unificação, embora nascido da mais nobre das vontades, sucumbiu à sua própria inconsistência estrutural. O que prometeu ser uma federação política de sujeitos tornou-se num complexo de regulamentação gerido por objectos tecnocráticos.
O Movimento Pan-Europeu é, historicamente, a mais antiga e persistente organização em prol da unificação europeia. Foi concebido e fundado pelo conde Richard von Coudenhove-Kalergi em 1923, um visionário austro-japonês que dedicou a sua vida a transformar a Europa, então fragmentada e bélica, num projeto de paz e coesão política.
No seu livro Idealismo Prático (1925), Kalergi fez uma previsão sociológica e filosófica sobre o futuro da humanidade, onde acreditava que a miscigenação ocorreria naturalmente devido à superação do preconceito e da mobilidade.
Era filho de um diplomata austro-húngaro (Heinrich) e de uma mãe japonesa (Mitsuko Aoyama). Cresceu, abastadamente, num ambiente que abrangia diferentes continentes, culturas e religiões (Catolicismo, Budismo, Judaísmo).
Para Kalergi, a sua própria origem não era uma "maldição", mas sim uma vantagem. Ele via a miscigenação como algo que produzia indivíduos mais ricos, mais abertos e mais livres do que as identidades raciais rígidas do seu tempo. A sua previsão da "raça eurasio-negroide" era uma visão utópica de um futuro onde as distinções raciais seriam irrelevantes, e a humanidade seria unida.
É, no entanto, na esfera da miscigenação que a sombra de Kalergi se torna mais densa na nossa conturbada actualidade. A miscigenação, vista por Kalergi como um destino histórico, é hoje usada como uma arma retórica contra a integração que ele tanto desejou.
Os líderes contemporâneos, aprisionados na tirania do consenso, ficaram reféns da gestão do instante, preferindo a cautela do denominador comum à coragem da visão estratégica. O estadista, outrora arquitecto da história, foi substituído pelo gestor de crises; pautando pela reactividade e jamais pela iniciativa.
Esta ausência de vontade política forte e unificadora criou uma lacuna de sentido. Os cidadãos europeus, desamparados perante a lentidão e a ineficácia, experimentaram a sensação nietzschiana de que os valores que fundaram a União estão mortos. E foi no vácuo desta legitimidade emocional que floresceu o medo do Outro, pois a própria ideia do "Nós" se desvaneceu.
A crise da imigração, mais do que uma falha logística, pode ser encarada como um paradigma da crise de soberania e de identidade. O ideal cosmopolita, visionado pelo pioneiro da unificação – onde o próprio previu que o "homem do futuro será de raça mista"– não se materializou numa sociedade apta a recebê-lo.
Podemos argumentar que esta visão era paradoxalmente elitista. Embora defendesse a mistura racial, Kalergi (de raízes aristocráticas e de ambiências de vida acima das fronteira e das restantes classes sociais) via nessa "nova nobreza" um produto da união de elites intelectuais e espirituais, distanciando-o de uma simples "miscigenação de massas".
O seu erro fulcral foi a ilusão do controlo descontrolado. Quando o Estado-Nação, a última trincheira de identidade reconhecível, se revelou incapaz de assegurar a segurança ontológica dos seus cidadãos (o controlo sobre quem entra e quem sai), a ansiedade irrompeu. A imigração, necessária para combater a decadência demográfica real, foi assim interpretada como a execução de uma sentença histórica, e não como uma solução pragmática.
A tragédia europeia foi, em última instância, a fragmentação do sujeito. O ideal de um novo "homem europeu" – liberto de nacionalismos – não se concretizou, e o que restou foi um indivíduo isolado, sem o amparo da comunidade política tradicional, à mercê das forças do mercado.
É neste ponto de fractura que se ergueram as vozes do ressentimento identitário, expressas por pensadores como (entre outros) Ernesto Milá. A sua visão não aceitou a dissolução do "Nós" na abstracção do cosmopolitismo; pelo contrário, afirmou a primazia da identidade telúrica, ligada ao solo, à história e à hereditariedade.
Uma geração depois, surgiu Ernesto Milá Rodriguez ( nascido em Barcelona,1952 ) , um jornalista e escritor que representou o reverso da moeda, resgatando e contrapondo o idealismo kalergiano. Se por um lado, o aristocrata falhou em mobilizar a paz, por outro, Milá triunfou em divulgá-lo e consolidá-lo, sob a sua lente, apelindando-o de "Plano Kalergi"; um artifício retórico que aponta a imigração e a integração europeia como a execução de um desígnio secreto para a aniquilação da identidade nacional.
Enquanto o ideal pan-europeu via o futuro numa humanidade mista e livre, o discurso anti-cosmopolita invertia o sentido: a miscigenação não era vista como enriquecimento, mas como diluição e aniquilação. O seu argumento central era que a promoção de uma "raça mista" não seria uma previsão sociológica, mas um desígnio perverso das elites para erradicar a diversidade europeia.
Para esta corrente de pensamento, a crise migratória não foi um problema de gestão falhada, mas a prova cabal da "traição das elites" que, deliberadamente, estariam a destruir a coesão étnica e cultural da Europa. A crítica de Milá e dos seus seguidores, ao instrumentalizar a fragilidade europeia, serviu como um espelho invertido do cosmopolitismo e acusou o ideal de unificação de ser uma "eugenia negativa", dirigida contra a população autóctone.
Em obras como El Libro Negro de la Inmigración, Ernesto Milá oferece uma explicação conspirativa de que a imigração em massa não é só um fenómeno de mercado ou geopolítico, mas também a execução de um plano maquiavélico para a "substituição" da população europeia.
Filipe Carvalho